domingo, junho 17, 2007

José Saramago


NA ILHA POR VEZES HABITADA


Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,

manhãs e madrugadas em que não precisamos de

morrer.


Então sabemos tudo do que foi e será.

O mundo aparece explicado definitivamente e entra

em nós uma grande serenidade, e dizem-se as

palavras que a significam.


Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas

mãos.

Com doçura.

Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a

vontade e os limites.


Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o

sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do

mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos

ossos dela.


Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres

como a água, a pedra e a raiz.

Cada um de nós é por enquanto a vida.

Isso nos baste.


poema retirado do livro PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª edição

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Espaço curvo e finito


Oculta consciência de não ser,

Ou de ser num estar que me transcende,

Numa rede de presenças e ausências,

Numa fuga para o ponto de partida:

Um perto que é tão longe, um longe aqui.

Uma ânsia de estar e de temer

A semente que de ser se surpreende,

As pedras que repetem as cadências

Da onda sempre nova e repetida

Que neste espaço curvo vem de ti.

OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição


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Poema à boca fechada


Não direi:

Que o silêncio me sufoca e amordaça.

Calado estou, calado ficarei,

Pois que a língua que falo é de outra raça.


Palavras consumidas se acumulam,

Se represam, cisterna de águas mortas,

Ácidas mágoas em limos transformadas,

Vaza de fundo em que há raízes tortas.


Não direi:

Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,

Palavras que não digam quanto sei

Neste retiro em que me não conhecem.


Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,

Nem só animais bóiam, mortos, medos,

Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam

No negro poço de onde sobem dedos.


Só direi,

Crispadamente recolhido e mudo,

Que quem se cala quando me calei

Não poderá morrer sem dizer tudo.


OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição

domingo, junho 10, 2007

SONETO DEL VINO - Jorge Luis Borges

SONETO DEL VINO
¿En qué reino, en qué siglo, bajo qué silenciosa
Conjunción de los astros, en qué secreto día
Que el mármol no ha salvado, surgió la valerosa
Y singular idea de inventar la alegría?
Con otoños de oro la inventaron.
El vinoFluye rojo a lo largo de las generaciones
Como el río del tiempo y en el arduo camino
Nos prodiga su música, su fuego y sus leones.
En la noche del júbilo o en la jornada adversa
Exalta la alegría o mitiga el espanto
Y el ditirambo nuevo que este día le canto
Otrora lo cantaron el árabe y el persa.
Vino, enséñame el arte de ver mi propia historia
Como si ésta ya fuera ceniza en la memoria.

SONETO DO VINHO
Em que reino, em que tempo e sob que silenciosa
Conjunção planetária, em que secreto dia
Que o mármor não guardou, surgiu a generosa
E única inspiração de inventar a alegria?
Ah! com outonos de ouro a inventaram. O vinho
Vermelho e ardente flui banhando as gerações
Como o rio do tempo, e em seu árduo caminho
Seu cântico nos doa, e seu fogo e seus leões.
Na jubilosa noite e na jornada adversa
Ele exalta a alegria ou suaviza o espanto.
E o ditirambo que hoje, efusivo, lhe canto
Disse-o o árabe uma vez, cantou-o outrora o persa.
Vinho, ensina-me a ver a minha própria história
Como se fora já cinza e pó na memória.

domingo, junho 03, 2007




Lixo - Luis Fernando Verissimo

Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu pacote de lixo. É a primeira vez que se falam.
- Bom dia...
- Bom dia.
- A senhora é do 610.
- E o senhor do 612
- É.
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu lixo...
- O meu quê?
- O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser pequena...
- Na verdade sou só eu.
- Mmmm. Notei também que o senhor usa muito comida em lata.
- É que eu tenho que fazer minha própria comida. E como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas tenho visto alguns restos de comida em seu lixo. Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
- Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrível! Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu lixo.
- Pois é...
- No outro dia tinha um envelope de telegrama amassado.
- É.
- Más notícias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
- Eu sei. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido no seu lixo...
- Tranqüilizantes. Foi uma fase. Já passou.
- Você brigou com o namorado, certo?
- Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buquê de flores, com o cartãozinho, jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
- É, chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- É que eu estou com um pouco de coriza.
- Ah.
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- É. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. Não saio muito. Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no seu lixo. Até bonitinha.
- Eu estava limpando umas gavetas. Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no fundo, você quer que ela volte.
- Você já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou.
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado. Eles só estavam dobrados.
- Se eu soubesse que você ia ler...
- Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria roubando. Se bem que, não sei: o lixo da pessoa ainda é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é domínio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna público. O que sobra da nossa vida privada se integra com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, aí você já está indo fundo demais no lixo. Acho que...
- Ontem, no seu lixo...
- O quê?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graúdos e descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente pode...
- Jantar juntos?
- É.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos fora.

- No seu lixo ou no meu?

Este texto está no livro O analista de Bagé.